sexta-feira, 7 de outubro de 2016

O voto

Como fizera em eleições anteriores, acordou cedo naquele domingo. Mais cedo, é verdade.

Na sexta, havia recebido um comunicado da sua chefia informando que tudo deveria estar limpo e arrumado uma hora antes do que havia sido combinado. O motivo não ficou muito claro, mas imaginou que eles estivessem querendo mostrar serviço para todas aquelas autoridades que passariam pela escola naquele domingo.

Antes do sol nascer, lá já estava limpando e arrumando tudo. Foi o primeiro a chegar no prédio, e as salas ainda estavam fechadas. Logo o pessoal das eleições chegou para cuidar das tarefas que lhe cabiam.

Época de eleição sempre dá um clima diferente à cidade. Principalmente nesta, em que os ânimos estavam tão exaltados. A intransigência estava tão grande que, se duas pessoas não votavam no mesmo candidato, uma delas era uma imbecil alienada. Qual delas? A outra, sempre.

Seis e meia e tudo já estava limpo e arrumado. Ainda não sabia exatamente o que aconteceria ali, tão cedo, e resolveu ir conversar com os mesários, conhecidos seus de outros pleitos.

- Fomos chamados cedo este ano - comentou com o rapaz que mexia no celular.
- É...
- Ainda falta uma hora e meia para abrirmos os portões. Pelo menos já está tudo pronto.
- Você não sabe? O Presidente comunicou que virá votar uma hora antes do previsto para o resto dos mortais. Por isso estamos aqui tão cedo.
- Sabia que tinha bajulação nisso. E ele pode fazer isso? Mudar o horário das eleições?
- Depois de tudo o que já aconteceu neste ano, me diga você o que é que ele não pode fazer!

Afinal, calou-se. De fato, está sendo um ano muito estranho. A política e a gestão do Estado estão se tornando deveras complexas para a maior parte das pessoas. Se falta base escolar para entender certas coisas, a impressa não se preocupa em explicar os fatos de forma didática. É bem verdade que algumas coisas não têm explicação. Outras, só são entendidas por quem fez especialização em Harvard. E ainda tem o judiciário, com sua linguagem truncada e seu senso de justiça volátil, que ora prende, ora solta.

Mas, ele queria apenas uma explicação sobre por que o Presidente poderia mudar o horário das eleições para somente ele votar às 07:00 horas.

Não tinha mais o quê fazer ali. Sentou e pôs-se a teorizar mentalmente:
- Se o presidente pode mudar o horário da eleição para que só ele possa votar mais cedo, então ele poderia mudar também, caso precisasse chegar atrasado. Mas se ele, de repente, esquecesse de votar e a eleição, por um milagre, estivesse empatada, ele poderia, sozinho, escolher o novo prefeito ou algum vereador, mudando o horário de encerramento da votação. É poder demais para um homem só. Deve ser por isso que todo mundo diz que ele deu um golpe. Pelo menos hoje, aqui, eu tenho certeza que ele deu um golpe no horário da eleição.

Formulou essa última frase e sorriu das próprias bobagens.

Mas nem tudo eram bobagens. De fato, ser presidente não autoriza a pessoa a ter o privilégio de ajustar o horário das eleições aos seus interesses. Se é que acordar uma hora mais cedo no domingo possa ser considerado um privilégio.

Às 07:00 horas, em ponto, o senhor calvo e grisalho chega à escola. Com ele, uma comitiva de homens de paletó e um batalhão de jornalistas, cinegrafistas e fotógrafos. Vota rápido. Responde algumas perguntas da imprensa e se prepara para ir.

Não podia perder aquela oportunidade. Afinal, não era todos os dias que o presidente em pessoa estava ali, pertinho. Resolveu arriscar. Segurou sua vassoura para fazer uma pose e assim que o senhor calvo passou ao lado, interpelou:

- Senhor, por favor, me tire uma dúvida.
- Pode falar - disse o presidente, parando para falar com o faxineiro.
- Eu acordei muito cedo para que tudo estivesse limpo antes do Sr. chegar. Mas não entendi: o presidente pode mudar o horário da eleição para só ele votar na frente de todo mundo?
- Agradeço a limpeza, mas, sobre a sua dúvida, acho que você deveria ler a Constituição.

Fato relevante
No dia 22/09/2016, o Presidente da República reformou o ensino médio brasileiro, para deixá-lo mais "técnico" e retirando a obrigatoriedade do ensino da Filosofia e da Sociologia. Isso tudo por meio de uma medida provisória. De fato, alguém precisa ler a Constituição.