quarta-feira, 28 de setembro de 2016

O sapato do presidente

Hangzhou, China, 03 de setembro de 2016.
 
Precisava de um presente para o seu chefe. Não podia perder a oportunidade de agradá-lo em seu aniversário, e, quem sabe, conseguir a promoção que há tanto esperava, já que em breve era o próprio chefe quem seria promovido e precisaria escolher seu sucessor.
 
Aquela loja de sapatos chamou-lhe a atenção e decidiu entrar. Explicou a situação para a vendedora e esta começou a exibir os modelos da nova coleção. Todos muito caros, infelizmente. Mas teria que fazer o sacrifício, mesmo que isso significasse uma parte considerável de seu salário do mês. Um presente como aquele iria fazer o chefe perceber que estava de fato comprometido com a Companhia e não mediria esforços para fazê-la prosperar.
 
- Esses aqui são da coleção passada, e em breve serão recolhidos. Por isso, estamos oferecendo bons descontos por eles, cerca de 40% do valor original.
 
"O chefe não aparenta ser tão vaidoso", pensou. "Mas, certamente, alguém reconhecerá este produto e o avisará do outlet".
 
Enquanto fazia sua ponderações mentais, percebeu que uma comitiva de homens ocidentais adentrara a loja. Farejando uma grande venda, a jovem que o atendia logo correu para se juntar aos demais colegas e, em bloco, esbanjavam cordialidade aos distintos senhores.
 
Em princípio, ficou irritado com a situação, mas era a chance de pensar sozinho e com mais calma sobre a difícil escolha que deveria fazer.
 
Enquanto pensava, ficou observando a cena na loja, mesmo sem compreender nada do que ali era falado. Não pôde deixar de perceber, contudo, que o ocidental calvo e grisalho, também não ficou satisfeito com o alto preço dos calçados que lhe eram mostrados. Um pouco insegura sobre se deveria fazer isso, a vendedora correu até o cliente indeciso e pegou o par "outlet" que havia apresentado anteriormente. 
 
- Espere! Eu ainda não decidi se não vou querer esses sapatos! 
 
- Por favor, senhor, perdoe-nos, mas aquele ocidental calvo e grisalho é o presidente do Brasil - falou rapidamente jovem, retornando à comitiva.
 
Não teve tempo de se enfurecer, pois antes que o dedo ficasse em riste, percebeu uma excelente oportunidade. Conteve a raiva e aguardou.
 
Os sapatos agradaram o presidente, que os calçou e já seguiu com eles para mais um compromisso diplomático.
 
- Você não teria outro par como aquele, teria?
 
- Mais uma vez, mil desculpas. Vou verificar se tenho outro.
 
- Tudo bem, contanto que sejam idênticos.
 
Ela retornou com outro par, de fato, idêntico ao anterior, e com o mesmo preço. Verificado o tamanho, decidiu levar e solicitou fosse embalado para presente.
 
- Por favor, escreva em um cartão: "O sapato do Presidente para o nosso futuro presidente".

sexta-feira, 23 de setembro de 2016

Microfone

Nova York, 20 de setembro de 2016.

- Ser latina neste país é mesmo uma merda - praguejou baixinho após o quinto carro não atender o seu pedido de passagem na faixa de pedestres.

Estava atrasada para cumprir um chamado na ONU Plaza. Mas também estava cansada da invisibilidade que adquirira no novo país. Enquanto apertava o passo, revivia na mente uma infância alegre e abundante, quando era o centro das atenções e brincar na espaçosa casa da praia era a sua única preocupação. 

A realidade a chama de volta com mais um esbarrão em um senhor de terno, que quase a atira do passeio. Pelo menos, serviu para perceber que já estava diante do imponente edifício espelhado, de 39 andares. Seu local de trabalho, naquele dia.

Não era a primeira vez que ia ali. Por isso não estranhou a devassa em sua caixa de ferramentas e as apalpadas indiscretas de uma agente mal encarada. Já não ligava mais se a americana branca ao lado passava pela barreira sem maiores checagens. Só queria fazer o seu trabalho e garantir o almoço da semana.

O prédio estava bem mais cheio do que das outras vezes. Uma mistura de sons disformes fazia par com a variedade de pessoas e cores no enorme salão de piso verde. 

[MESA 113]

Era a indicação que constava na ordem de serviço do dia. 

Começou a se mover pelo salão, em busca do número. Aproveitou para observar as múltiplas feições das pessoas, e pensou como era possível gente tão diferente ficar junto e não se estapear, discutir ou, o que é pior, ficar indiferente ao outro. Ao contrário. Todos estavam animados, falando alto e, de alguma forma, se entendendo muito bem. Ela não pode deixar de notar a animação com que um homem negro conversava com outros dois, orientais. "Todos aqui podem falar", pensou.

Localizou a mesa e já de longe percebeu qual seria a sua missão: a haste quebrada impedia que o microfone permanecesse em riste e, certamente, isso dificultaria o trabalho de quem fosse utilizá-lo.

Após se apertar para passar entre as cadeiras, finalmente chegou ao número 113. Rapidamente começou a cumprir a sua tarefa e a desparafusar a haste quebrada para substituí-la por uma nova. Estava na terceira volta, quando aquele conhecido sotaque a tomou pelos ouvidos. Levantou os olhos e viu que a placa em frente à mesa indicava o nome do seu país natal. Do outro lado da bancada estavam rostos que, apesar de desconhecidos, eram familiares. Sorriu e sentiu alegria, pois era a segunda vez naquela manhã que voltava à sua terra.

De repente, o trabalho passou a ser importante e a significar algo, afinal iria reparar o microfone que levaria a voz de seu país ao mundo. Finalmente, os americanos iriam ouvir o que eles tinham para falar. E ela estava participando disso.

Tomada pela surpresa da coincidência, pensou em cumprimentar e em se identificar como compatriota do homem que estava atrás da mesa, mas ele parecia tratar de um assunto bastante sério com outros três homens, também latinos. Conseguiu captar alguma tensão no ar e eles pareciam discutir se fariam ou não algo que, pela expressão retesada, deveria ser muito importante. Um grande discurso, quem sabe.

Ela se apressou para concluir o trabalho, pois as pessoas começaram a tomar assento. No centro do salão, diante de uma alta e iluminada parede amarela, um senhor calvo e grisalho fora anunciado e já se instalava em um púlpito de mármore escuro para começar a falar. No exato momento em que checava e aprovava o resultado do seu trabalho com o microfone, o homem calvo começava a se dirigir à plateia falando em português. 

Se distraíra com o discurso do homem calvo e com a arrumação das ferramentas em sua caixa. Não percebera que seu conterrâneo deixara a mesa. Espantou-se com o local vazio e, ao olhar para cima, viu ele e os outros três homens subindo as escadas e deixando o salão. O nome do seu país, assim como o microfone, com a haste novinha em folha, foram abandonados.

Muito frustrada, praguejou:

- De que adianta consertar o microfone de quem não tem voz?

FIM
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Epílogo
Jornalista: Sr. Presidente, o que o Sr. tem a dizer sobre o protesto de seis nações latinas, que se retiraram do salão no momento do seu discurso?
Presidente: Saíram? Não percebi.