quinta-feira, 25 de maio de 2017

Dirigindo a República


“Se alguém tivesse me dito que, aceitando este emprego, eu perderia o meu domingo inteiro esperando, em vão, a ligação de um playboy, eu nunca teria fichado”.
Fortes reclamava sozinho do bolo que estava levando do seu patrão. Recebera instruções para chegar cedo na mansão e não sair de lá até segunda ordem. Seu chefe chegaria de viagem a qualquer momento e precisaria dele para um deslocamento.
Sua vida não era de todo ruim. Na verdade, era muito fácil trabalhar para aquele empresário. Dirigia um Audi A8, preto e blindado, um dos melhores sedãs do mundo, com estofados em couro marfim e acabamentos em madeira de lei. 
O patrão e a família pouco vinham à mansão em Brasília e, por isso, apesar de ter assinado um contrato de trabalho como qualquer outro, só precisava ir até a casa quando solicitado. Impreterivelmente, no dia 30 de cada mês, seu salário caía na sua conta, quer houvesse trabalhado, ou não. E era um bom salário, se comparado com o dos outros motoristas que conhecia.
Fora contratado há cinco anos pelo chefe da segurança pessoal do empresário, e recebera orientações muito precisas sobre como se portar, o que dizer, o que não dizer. 
— O patrão não gosta de funcionário intrometido, entendeu? — disse o chefe da segurança. Mas se ele puxar assunto com você, faça o possível para não deixar a conversa morrer. Uma dica: ele adora falar de barcos e de música sertaneja.
— Tudo bem, farei o possível.
— Ah, e o mais importante: você nunca ouve nada do que ele estiver falando ao celular ou com algum convidado, entendeu?
— Positivo.
Fortes aproveitou a estabilidade financeira, e as muitas horas de folga, para investir em sua carreira, ou, mais precisamente, para começar uma. Matriculou-se em uma faculdade de direito, pois queria entender melhor como a sua cidade funcionava e quem sabe um dia fazer parte daquilo. Todas aquelas instituições, órgãos e poderes, pelo menos na teoria, tinham os seus propósitos, e a faculdade ajudou-lhe a descobri-los. Dispunha de muito tempo livre para estudar, principalmente nas vezes em que passava muitas horas dentro do carro, aguardando o patrão sair de alguma reunião.
Naquele semestre, estava cursando o quarto ano e já conseguia compreender o contexto de uma conversa ou outra que inevitavelmente ouvia do seu lugar ao volante. Havia muitos códigos utilizados pelos interlocutores, mas entendia bem que aquilo tudo dizia respeito a corrupção, tráfico de influência e voltas nas leis.
Muito dinheiro circulava nessas conversas e alguns nomes bem conhecidos eram mencionados. Também já teve que transportar figuras ilustres da política e até estrangeiros esquisitões, como um senhor ruivo e muito alto, a quem chamavam de “embésseder”, ou algo assim. Todos queriam falar sobre grana com o empresário e quase sempre saíam bastante satisfeitos das reuniões rápidas realizadas no carro. Mas Fortes já percebera que, na verdade, era o patrão que manipulava as pessoas com muita maestria.
O motorista é que nunca teve muitas oportunidades para conversar com o seu chefe. Quando sozinho, o empresário mantinha o celular sempre à mão ou ao ouvido, e os deslocamentos pela Capital Federal serviam para fechar negócios ou comunicar alguma decisão importante. As frases não passavam do “bom dia”, “fez boa viagem?” e “para onde vamos?”.
Certa vez, contudo, o patrão olhava perdido a cidade pelo vidro grosso e escuro do automóvel. O celular estava na mão, mas eram tantas demandas urgentes, que ele simplesmente havia cansado delas e de todo o resto.
— Fortes… Seu nome é muito bacana. Nome de político rico!
— Quem dera, doutor — respondeu o motorista, surpreso e constrangido.
— Você torce para o Flamengo, Fortes?
— Corinthians, doutor.
— Eu não vejo graça nenhuma no futebol…
— Mas de um modão sertanejo o doutor gosta, né? — soltou o funcionário, percebendo, só depois, que talvez houvesse cruzado a linha.
— “Oh, caba não mundão!” — entoou o empresário, empolgado.
— “Caba sim que bão!” — devolveu Fortes, com muito alívio.
Os dois caíram na gargalhada.
Mas isso foi há muitos meses. Naquele momento, não tinha moda sertaneja que demovesse Fortes da ideia de que estava sendo feito de trouxa por ter passado o domingo inteiro esperando alguém que nunca iria chegar.
Já passava das vinte horas. Fortes cochilava, quando o hino do Timão começou a ecoar no interior do carro.
— Fortes? — era o chefe da segurança do outro lado da linha.
— Na escuta, chefe.
— Ainda na mansão, certo?
— Claro. Até segunda ordem.
— Vá para o aeroporto. O patrão aterrissará em uma hora. Esteja esperando por ele no hangar de sempre.
— Positivo.
— Fortes?
— Sim, chefe.
— É bem possível que você hoje tenha que ser mais do que um simples motorista. Mas não quero antecipar os fatos. Aguarde as orientações do patrão.
A ligação foi interrompida antes que qualquer resposta pudesse ser formulada. Ainda com o fone na mão, Fortes sentia o coração acelerar a cada vez que pensava nos significados possíveis para aquela frase: “ser mais do que um simples motorista”. Afinal de contas, até aquele dia, o momento de maior tensão na sua vida, na verdade, acontecera com outras pessoas, quando, do volante, ele presenciara um assassinato em meio a uma briga de trânsito. 
No caminho até o aeroporto, sua imaginação vagueava entre uma possibilidade e outra. Não conseguia parar de conjecturar sobre em que tipo de missão se meteria nas próximas horas. Aquela incerteza corroía-lhe o estômago.
“Será se vou ter que transportar algum corpo ou fazer uma desova no Lago?”
“Não… sem chance! Agora eu tenho uma carreira e um nome a zelar.”
“Mas e se for? E se o patrão se meteu em uma fria e quer me levar junto? Ou melhor: quer me mandar sozinho?”
“Pensando bem… deve ser alguma coisa com mulher. Talvez ele queira fazer algo diferente e precise de mim para organizar. Quem sabe?”
Nem bem percebeu, já havia chegado no hangar. O lugar era amplo, tinha o pé direito alto e estava pouco iluminado. Funcionava ali uma empresa de fretamento aéreo classe A, e sempre recebiam e cuidavam do Gulfstream G650 do patrão, nos seus pousos em Brasília.
Fortes desceu do carro, e ficou aguardando, encostado na porta principal do galpão. Ao longe, na pista do Aeroporto Internacional, aviões zuniam com seus pousos e decolagens. O hangar acomodava outras tantas aeronaves, em sua maioria, jatos executivos. Na sofisticada recepção, uma atendente solitária cumpria o plantão naquela noite. Na salinha ao lado, dois auxiliares de pátio contavam pilhérias e assistiam televisão. 
Poucos minutos depois, o Gulfstream prata, com suas luzes piscantes, estacionou no local. Uma porta se abriu e um dos funcionários do hangar posicionou uma escada ali. Os pilotos foram os primeiros a desembarcarem, contradizendo o protocolo. Em seguida, o patrão colocou a cabeça para fora da porta e correu os olhos pela garagem em busca do seu motorista.
— Fortes? Faça a gentileza de subir aqui, por favor.
Definitivamente, algo estava mesmo muito estranho. Ele nunca havia sido solicitado a entrar no avião. Subia as escadas, ansioso pelo que o esperava. Ao cruzar a porta estreita, se deteve por alguns segundos a observar o interior da aeronave, com suas poltronas perolizadas, mobília em tom marrom escuro, e um sofá que, certamente, não caberia na sala da pequena quitinete de Fortes. O patrão servia-se de um drink, no pequeno bar localizado próximo à cabine dos pilotos.
— Você já trabalha para mim há o quê? Dez anos?
— Apenas cinco, doutor.
— Fortes, hoje vou fazer algo muito arriscado e gostaria de saber se posso contar com a sua lealdade. Já adianto que não posso entrar em detalhes muito específicos sobre o que se trata.
— Pode contar comigo, doutor. Aguardo as suas ordens — respondeu o empregado, sem conseguir, contudo, transmitir assertividade suficiente para demonstrar que estava confortável com a situação.
O empresário não havia construído aquele império à toa, e o seu instinto negociador percebia o nervosismo do seu funcionário com um pedido tão estranho. Como não dispunha de um plano melhor, só lhe restava seguir com as cartas que possuía.
— Ótimo! Sabíamos que você não nos decepcionaria. Logo mais, tenho uma reunião com o Presidente, lá no Palácio dele. Sabe onde fica?
— Sei sim, doutor. Já fomos lá outras vezes.
— Perfeito. O que vou fazer lá, dessa vez é muito arriscado e, se algo der errado, é possível que eu não consiga sair de lá fora de um carro da Guarda Presidencial. Percebe o problema?
— Positivo.
— Você vai me levar lá e vai ficar aguardando o meu retorno com o carro ligado. Melhor deixar ele em uma posição de fácil acesso ao portão. Se você perceber alguma agitação, ou mesmo tiver alguma arma apontada em sua direção, pise no acelerador e se mande. Não haverá devido processo legal, se meu plano falhar. Então, atropele alguém ou derrube o portão, se necessário. Você entendeu?
— Positivo.
— No banco de trás, vou deixar esta maleta. Se for o caso de você fugir, proteja esta maleta com a sua vida. Guarde-a e, algum lugar seguro e espere meu irmão ir te procurar. Você se lembra dele, certo? Só entregue a ele. Você entendeu?
— Positivo.
— Ótimo! Agora me ajude a prender este objeto aqui na gola da minha camisa.
Os dois desceram do avião e partiram, arrancando o carro pelo hangar.
A rádio que toca notícias quebrava o silêncio no automóvel. O patrão estava tenso e, como fizera raras vezes, sequer tocou no celular. Fortes não arriscou qualquer papo. Estava ainda digerindo e revisando todas as informações que acabara de receber.
Vinte e cinco minutos passaram voando e já estavam em frente ao destino. 
— Que Deus nos proteja, amigo — a prece veio acompanhada de um tapinha leve nos ombros do motorista.
— Amém, doutor.
Ao contrário das outras vezes em que visitaram o Palácio, naquela noite Fortes não precisou entregar sua habilitação ou responder qualquer pergunta. Bastou o empresário baixar o vidro, dizer o seu nome, e em dois ou três minutos já estavam dentro. 
O patrão desceu e, conforme combinado, a maleta ficou dormindo sossegada no banco traseiro. Fortes manobrou o carro para conseguir a posição mais favorável à uma eventual fuga. O modelo era blindado, então, tiros não seriam problema. Não estava certo sobre a eficácia da proteção, em casos de granadas, mas torcia mesmo que tudo acabasse rápido e bem para todo mundo.
O tempo, a despeito das suas preces, se arrastava.
“Acho que é por causa disso que os cientistas dizem que o tempo é relativo. Chega o fim do ano, mas o dia de hoje não acaba!”
“Será se vai dar merda isso aqui?”
“Aquele pen-drive que ele levou na gola... Não parecia um gravador, mas o que mais poderia ser? Um rastreador, talvez… Tinha um tipo de borracha em volta…”
“E o que será que tem nesta maldita maleta? Dólares? Pedras preciosas? Não… acho que o patrão não faria tanto estardalhaço por dinheiro. Ele já tem de sobra. Deve ser algo muito mais sério… mas, o quê?”
“E eu metido nisso tudo? Ai de mim! Se eu for pego, meus planos de passar em algum concurso público vão para o ralo!”
“E se aquele objeto for um detonador para uma bomba que está dentro desta maleta? Caralho! É isso! Todo aquele papo de sair correndo, derrubando tudo, era balela! Se algo acontecer com ele, quem vai explodir sou eu!”
De repente, Fortes estava pulando no banco, gritando e levando as mãos ao alto.  Mas não foi de pânico pela bomba. Um cachorro enorme estava latindo na sua janela, riscando o vidro com os dentes. Por cima do animal, um feixe de luz vindo de uma lanterna, segurada por um soldado, tentava iluminar o interior do carro. O gesto vindo de fora era claro: deveria abaixar o vidro.
Passado o susto, conseguiu atender ao comando do soldado e abriu um pouco a janela.
— Assustou? — disse o praça, rindo.
Não houve resposta.
— O senhor está parado em local proibido. Aqui é área de segurança. Vai demorar muito?
— Sinceramente, não sei. Mas não queria ter que tirar o carro daqui. O doutor pode não gostar.
Fortes respondeu ao soldado com alguma convicção na voz, mas o que ele queria mesmo ter dito era: “Socorro! Tem uma bomba neste carro e vamos todos explodir!”.
— Tudo bem, parceiro — disse o soldado. Vou reportar ao meu superior, mas acho que não teremos problemas. Boa noite.
“Então, é dessa forma que eu vou reagir, se tiver que sair fugindo daqui? Com chiliques e gritinhos… Não sei o que é pior, eu ter o emprego mais perigoso da República, estar com uma bomba no colo ou essa minha reação histérica ao primeiro sinal de perigo…”
“Trinta minutos e nem um sinal do homem…”
“Pelo menos, passado o susto, tudo está bem tranquilo aqui fora. Eu não seria o homem mais feliz do mundo, naquele momento, se não houvesse uma janela blindada entre mim e o cachorro, ou mesmo se a bomba explodisse.”
“Será que um empresário como ele seria capaz de explodir a casa do presidente? E, para o meu azar, me explodir junto?”
Quanto mais pensava no assunto, mais lhe subia uma gastura no peito, e mais ansioso ficava.
Quase quarenta minutos depois, o patrão sai pela porta de trás do Palácio, a mesma pela qual tinha entrado. Um assessor apressado o seguia, gesticulando efusivamente. Uma resposta do empresário foi o bastante para ele parar de persegui-lo e acompanhar a sua partida apenas com os olhos. 
“Ufa! Acho que agora não explodo mais…”
Se sua relação com o patrão fosse mais próxima, Fortes teria perguntado quais foram as palavras mágicas que ele usara para paralisar aquele homem e, sem rodeios, perguntaria como diabos ele tinha coragem de andar por aí com uma bomba na maleta.
Tão logo entrou no carro, o patrão retirou o equipamento da camisa, abriu a maleta e o acoplou em um computador que havia dentro dela. 
— Saída rápida, Fortes!
— Positivo!
Após saírem do Palácio, mas antes que Fortes tivesse tempo de perguntar o próximo destino, o empresário deu uma forte gargalhada.
— Sabe o que significa a noite de hoje, meu amigo? O início de um novo Brasil. E você faz parte disso! Pena que não estarei exatamente aqui para viver o resultado dessa bomba.
Fortes sabia que aquele era um monólogo do patrão consigo mesmo, por isso apenas laçou um olhar pelo retrovisor e esticou a boca para um lado, esboçando um sorriso. 
— Para onde vamos agora, doutor?
— Ah sim. De volta ao aeroporto.
“Espera aí… Ele falou bomba??”
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*Os fatos narrados neste conto são frutos exclusivos da fértil imaginação do autor deste blog.


segunda-feira, 10 de abril de 2017

O homem do campo


Mundico ouvia aquela conversa sobre as reformas do presidente e pensava sobre o futuro da sua gente. "Será se os homem vão mesmo tirar a aposentadoria da gente?". "Às vezes não sobra nem o de comer, imagina ter que mandar dinheiro para o governo todo mês?".
— Tião, tu acha que essa história procede?
— Num sei Mundico, mas esses meninos aí entende mais das coisas do que nós. É bem capaz de ser verdade mesmo.
Pouco antes do final da roda de conversas, Mundico pediu a palavra:
— Se o que vocês estão dizendo for verdade, tá todo mundo lascado aqui. Eu mesmo, já tô com 43 anos, mas não aguento com as costas. Duas horinha de serviço e ataca uma dor que eu num guento, tenho que sentar. Não fosse os menino, nós já tava tudo passando fome. Todo mundo aqui está de prova. Segunda-feira mesmo vou lá no Marabá tirar isso a limpo com o nosso advogado e, se for verdade mesmo tudo isso que vocês estão falando, vou bater em Brasília para falar com o Presidente.
As risadas saíram frouxas, mas, quem conhecia Mundico bem, sabia que ele não estava brincando. Quando ele colocava alguma coisa na cabeça, não havia quem o demovesse a ideia.

*

Sete horas da manhã e Mundico já na porta do escritório. Como o estabelecimento só abriria às oito, aproveitou para traçar o plano que o levaria até Brasília, até o tal Presidente.
"Daqui eu já vou na rodoviária ver a passagem e, se der, já tirar o bilhete. Volto na roça, arrumo umas coisas, dou um cheiro na mulher e volto para pegar o ônibus. Lá em Brasília eu vejo como eu faço para encontrar com o homem. Agora só preciso entender bem essa reforma e ensaiar o que vou falar para ele".
O secretário do advogado abriu o escritório pontualmente às oito. Não estranhou Mundico na porta tão cedo, pois essa não era a primeira vez que ele corria até ali para buscar respostas.
— Que foi agora Sr. Mundico? Veio saber do aquecimento global?
— Oi? Não conheço essa luta. Contra quem é?
— Esquece! Essa briga é grande demais até mesmo para um homem de fibra como o senhor.
— Amigo, se a luta for justa, ela sempre caberá no peito! — dois socos fortes acompanharam as sílabas dessa última palavra.
— Está certo. Mas, o senhor ainda não falou o que  o está preocupando dessa vez…
— Ainda ontem, aqueles meninos lá da universidade estiveram lá com a gente e passaram mais de hora falando de uma tal de reforma da previdência. Pelo que eles adiantaram, o negócio é sério. Deve ser mais sério do que esse seu aquecimento bem aí. Então, eu vim aqui saber do doutor o que ele acha disso. Os detalhes, sabe?
— Tudo bem. O senhor já é de casa. Pode ir sentando, que eu vou aprontar um café para servir. O doutor só deve chegar por volta das nove horas.
Entre uma xícara e outra, eles foram colocando os assuntos da cidade e da roça em dia, e o doutor já chegou pegando um gancho em uma dessas conversas.
— Se ela engravidou, os pais tinham mais é que acolher mesmo. Isso de colocar a moça na rua por causa desses acidentes, só aumenta as chances dela se tornar uma usuária de drogas ou mesmo recorrer à prostituição para sobreviver. Mas, eu tenho certeza que o Sr. Mundico não veio aqui falar da filha do Tião.
— Verdade, doutor. Meu problema hoje é outro. Queria saber do senhor sobre essa reforma da previdência que o Presidente quer fazer. No que isso vai dificultar a nossa vida lá na roça? Porque melhorar eu já sei que não vai…
— Nem me fale, Sr. Mundico… Bem… Vou tentar explicar com poucas palavras, mas, se ficar alguma dúvida, pode perguntar. Hoje, todos que trabalham no campo, produzindo comida para a cidade em seu pedaço de chão, têm direito a uma aposentadoria chamada “especial“. É especial porque o homem do campo não precisa contribuir para o INSS, como os trabalhadores com carteira assinada fazem. É especial também porque a lida no campo é muito mais pesada do que a da cidade, e o senhor sabe muito bem disso.
— Minhas costas que o digam, doutor.
— Pois é. Pela nova regra, todos passarão a contribuir, mesmo vocês, agricultores e criadores. E a idade para começar a ter direito será sessenta e cinco anos, sendo que, para conseguir receber o valor cheio, o tempo de contribuição será de quarenta e nove anos. Ou seja, tem que mandar dinheiro para o governo por quarenta e nove anos, sem falhar nenhum mês.
— O que? É desse jeito mesmo? Mas esse povo de Brasília está pensando o que da vida? Passam o dia no ar condicionado, naqueles paletó, e não sabem nada da luta que é para arrancar comida da terra. Nunca tiveram que limpar uma junquira e ficam com essas ideias erradas de reformar a nossa aposentadoria.
— O senhor está coberto de razão, Sr. Mundico. Só nos resta lutar para que essa reforma não passe. Os movimentos estão se organizando por aqui e a gente precisa incluir vocês do campo também.
— Vamos lutar juntos sim. Mas antes eu tenho que colocar em prática um plano meu. Vou para Brasília falar com o Presidente. Saindo daqui, já vou na rodoviária tirar a passagem para lá.
— Sr. Mundico, o Sr. já foi em Brasília e sabe que não é muito perto. Além disso, é uma viagem cara e pode, no final, ser inútil.
— Lembro bem que dá mais de um dia de viagem. Mas, isso não importa agora. Se eu não for até lá, contar ao Presidente sobre essa gente que eu represento aqui, não vou mais ter paz comigo mesmo. E essa questão do dinheiro, já sei que o doutor vai me dar uma ajuda!
— Se eu já não o conhecesse há tanto tempo, gastaria mais algumas palavras para tentar convencê-lo a não ir. Mas, cabeça dura como Sr. Mundico, não há nesta região.
A conversa terminou com muitas risadas e um lampejo de esperança nos olhos dos doutor. Ele não duvidava que o caboclo conseguiria falar com o Presidente, só não estava muito confiante na eficácia da medida.

*

Mundico se despediu da maioria dos seus companheiros de assentamento. Precisava correr, pois a viagem teria início em um par de horas. Todos ajudaram como puderam: com uma fruta, com uma marmita, com um dinheiro.  Na pior das hipóteses, aquelas seriam as primeiras contribuições que fariam para as suas aposentadorias.
O ônibus deixou a rodoviária no horário marcado. Seriam mais de trinta horas, olhando a paisagem e pensando na vida.
Muitas cenas das lutas passadas assaltaram a sua mente. Lembrou de como foi difícil chegar naquela terra. Os primeiros dias de ocupação, o medo da morte no fação e na espingarda dos fazendeiros. O processo final ainda estava na Justiça, mas, segundo seu advogado, agora era só uma questão de tempo. O que mais queria era trabalhar e morrer naquela terra. Na sua terra. E se misturar com ela para voltar ao mundo em forma de alimento e de água. Era o seu sonho.
Dormiu.
Acordou.
Dormiu novamente.
Por fim, despertou já em Brasília. Explicou seu plano ao motorista, inclusive com os detalhes da sua opinião sobre a reforma do Presidente.
— Meu senhor, o senhor veio do Pará até aqui e ninguém lhe disse que esse seu plano é uma furada? Que é uma loucura sem tamanho? Pois eu lhe digo: o senhor é louco e esse seu plano é mais louco ainda.
— Homem, responda a minha pergunta, como faço para chegar no Presidente?
O motorista passou as coordenadas, e arriscou mais duas ou três piadas sobre a ideia de Mundico. Por alguma razão, talvez para ter tempo de rir um pouco mais, resolveu facilitar bastante a vida do agricultor, esticou a rota e o deixou a cerca de uma hora de caminhada do Palácio Presidencial.
Mundico seguiu seu rumo. Contemplava os edifícios todos iguais do setor ministerial e se perguntava como era possível o trabalho de tanta gente não resultar em uma vida melhor para ele e para os seus.

*

— Bom dia! É aqui que o seu Presidente trabalha? Preciso falar com ele.
A assertividade de Mundico deixou a recepcionista do Palácio afônica por um instante. Mas, logo lembrou do procedimento operacional padrão quando pessoas com baixo nível de discernimento chegavam procurando pelo Presidente. Sim, havia um protocolo para tratar os “aventureiros“, como Mundico.
— Lamento, Sr. O Presidente cumpre agenda hoje em São Paulo. Ou seja, ele não está aqui para recebê-lo.
Mundico já havia levado muitos nãos na vida. Foram nãos de muitos tipos, inclusive daquele que estava recebendo ali: o não do mentiroso. Sabia que para esse tipo de não, a única saída era entrar na mentira.
— Tá certo. Vou esperar aqui fora.
— Sr., o Sr ouviu bem? O Presidente está em São Paulo e não virá ao Palácio hoje.
— Mas uma hora ele vai ter que vir aqui, e eu vou esperar ele chegar.
Quando foi carregado para fora e jogado no enorme descampado que havia em frente ao Palácio, Mundico percebeu que o seu pessoal fazia falta. Juntos eles eram mais fortes. Sozinho, ele era só mais um.
Passou o resto do dia ali. No sol. Comendo do pouco que os seus companheiros haviam lhe entregue. A noite sentiu frio, mais pela solidão do que pela temperatura.
O dia seguinte foi igual. Dessa vez, a agenda a ser cumprida era nos Estados Unidos e o novo prazo para a volta do Presidente passou a ser uma semana.
Decidiu ficar ali e continuar esperando. Mesmo que aquele não fosse um não do mentiroso, era inaceitável voltar para casa sem ter alcançado o seu objetivo.
Ao final do quarto dia, já não tinha mais comida e estava bebendo a água suja dos espelhos d'água que havia por ali.
No quinto dia, sua figura passou a chamar atenção.
Um jornalista o chamou para conversar e viu na sua história um excelente furo de reportagem.
— Estamos aqui direto do Palácio, onde um homem do campo, chamado Mundico, faz uma greve de fome para protestar contra a reforma da previdência. Ele queria explicar melhor as suas razões diretamente ao Presidente, mas não foi recebido. A reportagem entrou em contato com o gabinete do presidente e fomos informados que "o Sr. Mundico nunca havia procurado aquele setor para agendar qualquer reunião com o Presidente; que se o tivesse feito, certamente o Presidente o teria recebido".
Aquela notícia chegou como um tapa de urso em milhões de brasileiros. Os movimentos sociais e de oposição ganharam força, o trabalhador se organizou, os servidores saíram de suas salas refrigeradas, e, de repente, todos se encontraram em Brasília. Uma semana depois, a capital federal batia recordes populacionais, e, na semana seguinte, os "acampados no poder" já chegavam a dez milhões de pessoas.

*

A reforma da previdência? Essa não passou, mas passou uma nova norma que obrigava os bancos a contribuírem com cinquenta por cento de seus lucros para o sistema da seguridade social.
Mundico? Depois da reportagem e das primeiras barracas chegarem, ele percebeu que sua ideia era mesmo louca e que o Presidente jamais o receberia para uma reunião. Resolveu voltar para a roça já naquele dia. Como não havia se despedido de ninguém, nem do repórter que o tornara famoso, os boatos logo trataram de fazer dele um desaparecido e a sua imagem se tornou uma das bandeiras de luta daqueles acampados.
A confusão só foi esclarecida meses depois, com a transmissão ao vivo da sua reunião com o Presidente.

sábado, 4 de março de 2017

Amigo da onça

Não era fácil ser ele. Naquela manhã, menos ainda.
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Uma preguiça incontrolável o prendia à cama como um super imã. Precisava salvar o mundo, mas não havia quem o salvasse daquele pecado. Meio sonhando, meio despertando, sua mente viajava pelas situações mais inusitadas. Algumas reais, é verdade, a exemplo do que ocorrera no dia anterior, quando um cachorro, latindo para ele, disse: "aquele cara na minha árvore acabou de assaltar um jovem e está ali apurando o produto do crime, tranquilamente! Não vai fazer nada?"
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Sim, ele podia ouvir e falar com os animais. E sim, ele era um agente da polícia. O cachorro sabia disso e, com razão, chamava-o à responsabilidade. O que o animal não sabia é que o dia dele havia sido muito puxado e que ele não estava nada animado para mais um perrengue. Resolveu ignorar o cachorro e seguir seu rumo para casa. Não adiantou muito, pois os latidos ficaram na sua cabeça e o acompanharam até a hora em que finalmente pegou no sono. 
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Havia conseguido seus super poderes ainda adolescente, quando encontrou uma sereia entre um mergulho e outro na Ilha do Mel, litoral do Paraná. Ele não lembra bem quais foram as palavras dela, muito menos em qual língua ela falava. Só lembra da beleza daquele ser e da missão que ela lhe deu: combater o mal. Quando voltou à vida, estava cercado de curiosos e com um bombeiro-resgatista pressionando-lhe o peito. Mal acabou de cuspir toda a água engolida, percebeu que o mundo havia se tornado um lugar mais barulhento. Agora, ele era capaz de ouvir e compreender nitidamente o que cada mamífero no mundo tinha para lhe dizer. Não só isso: se tocasse o animal, era capaz também de acessar todas as suas memórias. 
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Aprendeu a ignorar os bichos e passou muito tempo resistindo a aceitar o seu encargo. Mas, um dia, sua vida tomou um novo rumo. 
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Nessa época, já estava com vinte anos e trabalhava com refrigeração, realizando manutenções em ar condicionados e afins, no interior do Paraná. Cumprindo uma ordem de serviço na casa de um importante político da região, ficou impressionado com o fato do homem ter uma onça de estimação enjaulada em seu quintal. Por motivos óbvios, ele não ia a zoológicos, e nunca tinha tido a chance de "conversar" com um felino daquele porte. Confiando nas barras de ferro, se aproximou e ensaiou um papo com o "bichano".
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- Então, como você foi parar aí?
- Fui cassada, me acertaram um tiro e apaguei - falou a onça, meio entediada e já sabendo que aquele humano não poderia lhe compreender. Quando acordei, já estava aqui, e isso já tem uns sete anos.
- Que história triste.
Nesse momento, o animal saltou para o fundo da jaula, olhando desconfiado para aquele homem.
- Vivendo aqui, com essas pessoas, você já deve ter visto de tudo, não é verdade?
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Ainda acuada, ela não falou mais nada. Ele, frustado, foi embora.
Alguns meses depois, voltou àquela mansão e, novamente, foi ter com a onça. Dessa vez, a conversa fluiu.
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- Fiquei muito confusa da última vez que você veio aqui. Pensei bastante, e acho que você pode me ajudar a me vingar das pessoas que fizeram isso comigo. Posso contar com você?
- Olha, posso até conversar com você, mas não espere muito de mim. Quando recebi esse dom, recebi também a missão de combater o mal, mas nunca tive coragem de fazer nada nesse sentido. Além de me comunicar com mamíferos, se toco o bicho, acesso todas as suas memórias. Percebe o tamanho desse poder? Contudo, gosto demais de estar vivo e sei bem do que o mal é capaz.
- Eu adoraria encontrar quem te deu esse dom, para elogiar sua burrice. Como é possível? Tanta gente no mundo, e a pessoa escolhe justo um covarde! Vou te contar só uma coisa, aí você decide se vai me ajudar ou não: bem aí onde você está, há um saco de ossos enterrado de um garoto de quinze anos, que eu mesma comi.
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Dessa vez, quem deu um enorme salto foi ele. 
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- Estava já há três dias sem receber comida e estava literalmente louca. Eles trouxeram o garoto e o colocaram de joelhos aqui na frente. Disseram que ele ia pagar pelo que tinha feito, que ele não poderia ter arranhado a Lamborguini do deputado, e que não adiantava dizer que havia sido sem querer. Passaram o coitado para o lado de cá e a minha fome falou mais alto. Coisa de instinto, entende?
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Ele estava horrorizado com a história que a onça estava contando. Não conseguia falar nada, pois tinha um nó no lugar da garganta. Mais uma vez foi embora e não atendeu ao pedido de ajuda do animal.
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Naquela noite e pelo resto da semana não conseguiu mais dormir. Quando fechava os olhos, via o garoto sendo devorado. Não aguentava mais essa tortura e resolveu que ia ajudar a onça com a sua vingança, afinal uma pessoa que mata por um carro arranhado não pode ficar sem uma punição. A partir daí, a cada dia, até voltar na casa, ficava mais e mais ansioso: "o que mais aquela onça sabe?"
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O grande dia chegara. Fora designado novamente para um serviço na casa do político e logo estava lá em frente à onça.
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- Bom, quero me desculpar pela minha covardia. Pode contar comigo para a sua vingança. Mas é bom você ter um plano, pois não sou muito criativo com essas coisas.
- Primeiro: não vou agradecer, pois você está apenas cumprindo sua obrigação! Mas o meu plano é bem simples. Toque em mim, acesse minhas memórias, e transcreva tudo o que eu vi e ouvi o Sr. Deputado fazer e dizer. Não esqueça que minha audição é muito superior a de vocês e eu ouço tudo que é dito por aqui, mesmo dentro da casa. Selecione as partes mais relevantes, com todos detalhes, e entregue anonimamente à Polícia Federal. Eles já estão investigando o "chefe" e vieram aqui algumas vezes, mas são tão tontos que não encontraram as evidências mais importantes. Basta fazer isso e já me sentirei vingada. Tudo bem?
- Claro. Quero minhas noites de sono de volta.
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Ele então, com algum medo, passou o braço pelas grades e tocou a fronte da onça. Em segundos, uma podridão sem fim chegou à sua mente. 
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- Pronto, feito! 
- Ok, conto com você. Vá lá e faça a justiça acontecer.
- Farei com muito gosto. Só mais um detalhe: nas suas memórias não vi ninguém ser assassinado.
- Bom, digamos que eu tenha exagerado um pouco para conseguir te convencer a me ajudar, mas tenha certeza que toda essa corrupção e apropriação de dinheiro público matou muito mais gente do que você pode imaginar.
- Tenho que me lembrar de nunca mais confiar em uma onça. Mas você tem razão. Adeus.
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Ele cumpriu a sua palavra e logo a polícia teve acesso a um mar de provas contra aquele político e contra muitos outros. Já se vão mais de dois anos e a operação "Lava Jato" ainda é notícia.
Nosso herói percebeu que não poderia fugir da sua missão e precisava honrar o dom que recebera. Resolveu se tornar agente de polícia e, desde então, o mal não tem tido trégua. Na verdade, pela manhã, quando a preguiça fala mais alto, às vezes sim...
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Epílogo:

- Alguém pode me explicar como aqueles miseráveis conseguiram encontrar o dinheiro e os computadores que estavam no esconderijo do jardim? Quem abriu o bico?
- Chefe, nenhum de nós falou nada. 
- Vou acreditar que foi a onça, então!