quinta-feira, 25 de maio de 2017

Dirigindo a República


“Se alguém tivesse me dito que, aceitando este emprego, eu perderia o meu domingo inteiro esperando, em vão, a ligação de um playboy, eu nunca teria fichado”.
Fortes reclamava sozinho do bolo que estava levando do seu patrão. Recebera instruções para chegar cedo na mansão e não sair de lá até segunda ordem. Seu chefe chegaria de viagem a qualquer momento e precisaria dele para um deslocamento.
Sua vida não era de todo ruim. Na verdade, era muito fácil trabalhar para aquele empresário. Dirigia um Audi A8, preto e blindado, um dos melhores sedãs do mundo, com estofados em couro marfim e acabamentos em madeira de lei. 
O patrão e a família pouco vinham à mansão em Brasília e, por isso, apesar de ter assinado um contrato de trabalho como qualquer outro, só precisava ir até a casa quando solicitado. Impreterivelmente, no dia 30 de cada mês, seu salário caía na sua conta, quer houvesse trabalhado, ou não. E era um bom salário, se comparado com o dos outros motoristas que conhecia.
Fora contratado há cinco anos pelo chefe da segurança pessoal do empresário, e recebera orientações muito precisas sobre como se portar, o que dizer, o que não dizer. 
— O patrão não gosta de funcionário intrometido, entendeu? — disse o chefe da segurança. Mas se ele puxar assunto com você, faça o possível para não deixar a conversa morrer. Uma dica: ele adora falar de barcos e de música sertaneja.
— Tudo bem, farei o possível.
— Ah, e o mais importante: você nunca ouve nada do que ele estiver falando ao celular ou com algum convidado, entendeu?
— Positivo.
Fortes aproveitou a estabilidade financeira, e as muitas horas de folga, para investir em sua carreira, ou, mais precisamente, para começar uma. Matriculou-se em uma faculdade de direito, pois queria entender melhor como a sua cidade funcionava e quem sabe um dia fazer parte daquilo. Todas aquelas instituições, órgãos e poderes, pelo menos na teoria, tinham os seus propósitos, e a faculdade ajudou-lhe a descobri-los. Dispunha de muito tempo livre para estudar, principalmente nas vezes em que passava muitas horas dentro do carro, aguardando o patrão sair de alguma reunião.
Naquele semestre, estava cursando o quarto ano e já conseguia compreender o contexto de uma conversa ou outra que inevitavelmente ouvia do seu lugar ao volante. Havia muitos códigos utilizados pelos interlocutores, mas entendia bem que aquilo tudo dizia respeito a corrupção, tráfico de influência e voltas nas leis.
Muito dinheiro circulava nessas conversas e alguns nomes bem conhecidos eram mencionados. Também já teve que transportar figuras ilustres da política e até estrangeiros esquisitões, como um senhor ruivo e muito alto, a quem chamavam de “embésseder”, ou algo assim. Todos queriam falar sobre grana com o empresário e quase sempre saíam bastante satisfeitos das reuniões rápidas realizadas no carro. Mas Fortes já percebera que, na verdade, era o patrão que manipulava as pessoas com muita maestria.
O motorista é que nunca teve muitas oportunidades para conversar com o seu chefe. Quando sozinho, o empresário mantinha o celular sempre à mão ou ao ouvido, e os deslocamentos pela Capital Federal serviam para fechar negócios ou comunicar alguma decisão importante. As frases não passavam do “bom dia”, “fez boa viagem?” e “para onde vamos?”.
Certa vez, contudo, o patrão olhava perdido a cidade pelo vidro grosso e escuro do automóvel. O celular estava na mão, mas eram tantas demandas urgentes, que ele simplesmente havia cansado delas e de todo o resto.
— Fortes… Seu nome é muito bacana. Nome de político rico!
— Quem dera, doutor — respondeu o motorista, surpreso e constrangido.
— Você torce para o Flamengo, Fortes?
— Corinthians, doutor.
— Eu não vejo graça nenhuma no futebol…
— Mas de um modão sertanejo o doutor gosta, né? — soltou o funcionário, percebendo, só depois, que talvez houvesse cruzado a linha.
— “Oh, caba não mundão!” — entoou o empresário, empolgado.
— “Caba sim que bão!” — devolveu Fortes, com muito alívio.
Os dois caíram na gargalhada.
Mas isso foi há muitos meses. Naquele momento, não tinha moda sertaneja que demovesse Fortes da ideia de que estava sendo feito de trouxa por ter passado o domingo inteiro esperando alguém que nunca iria chegar.
Já passava das vinte horas. Fortes cochilava, quando o hino do Timão começou a ecoar no interior do carro.
— Fortes? — era o chefe da segurança do outro lado da linha.
— Na escuta, chefe.
— Ainda na mansão, certo?
— Claro. Até segunda ordem.
— Vá para o aeroporto. O patrão aterrissará em uma hora. Esteja esperando por ele no hangar de sempre.
— Positivo.
— Fortes?
— Sim, chefe.
— É bem possível que você hoje tenha que ser mais do que um simples motorista. Mas não quero antecipar os fatos. Aguarde as orientações do patrão.
A ligação foi interrompida antes que qualquer resposta pudesse ser formulada. Ainda com o fone na mão, Fortes sentia o coração acelerar a cada vez que pensava nos significados possíveis para aquela frase: “ser mais do que um simples motorista”. Afinal de contas, até aquele dia, o momento de maior tensão na sua vida, na verdade, acontecera com outras pessoas, quando, do volante, ele presenciara um assassinato em meio a uma briga de trânsito. 
No caminho até o aeroporto, sua imaginação vagueava entre uma possibilidade e outra. Não conseguia parar de conjecturar sobre em que tipo de missão se meteria nas próximas horas. Aquela incerteza corroía-lhe o estômago.
“Será se vou ter que transportar algum corpo ou fazer uma desova no Lago?”
“Não… sem chance! Agora eu tenho uma carreira e um nome a zelar.”
“Mas e se for? E se o patrão se meteu em uma fria e quer me levar junto? Ou melhor: quer me mandar sozinho?”
“Pensando bem… deve ser alguma coisa com mulher. Talvez ele queira fazer algo diferente e precise de mim para organizar. Quem sabe?”
Nem bem percebeu, já havia chegado no hangar. O lugar era amplo, tinha o pé direito alto e estava pouco iluminado. Funcionava ali uma empresa de fretamento aéreo classe A, e sempre recebiam e cuidavam do Gulfstream G650 do patrão, nos seus pousos em Brasília.
Fortes desceu do carro, e ficou aguardando, encostado na porta principal do galpão. Ao longe, na pista do Aeroporto Internacional, aviões zuniam com seus pousos e decolagens. O hangar acomodava outras tantas aeronaves, em sua maioria, jatos executivos. Na sofisticada recepção, uma atendente solitária cumpria o plantão naquela noite. Na salinha ao lado, dois auxiliares de pátio contavam pilhérias e assistiam televisão. 
Poucos minutos depois, o Gulfstream prata, com suas luzes piscantes, estacionou no local. Uma porta se abriu e um dos funcionários do hangar posicionou uma escada ali. Os pilotos foram os primeiros a desembarcarem, contradizendo o protocolo. Em seguida, o patrão colocou a cabeça para fora da porta e correu os olhos pela garagem em busca do seu motorista.
— Fortes? Faça a gentileza de subir aqui, por favor.
Definitivamente, algo estava mesmo muito estranho. Ele nunca havia sido solicitado a entrar no avião. Subia as escadas, ansioso pelo que o esperava. Ao cruzar a porta estreita, se deteve por alguns segundos a observar o interior da aeronave, com suas poltronas perolizadas, mobília em tom marrom escuro, e um sofá que, certamente, não caberia na sala da pequena quitinete de Fortes. O patrão servia-se de um drink, no pequeno bar localizado próximo à cabine dos pilotos.
— Você já trabalha para mim há o quê? Dez anos?
— Apenas cinco, doutor.
— Fortes, hoje vou fazer algo muito arriscado e gostaria de saber se posso contar com a sua lealdade. Já adianto que não posso entrar em detalhes muito específicos sobre o que se trata.
— Pode contar comigo, doutor. Aguardo as suas ordens — respondeu o empregado, sem conseguir, contudo, transmitir assertividade suficiente para demonstrar que estava confortável com a situação.
O empresário não havia construído aquele império à toa, e o seu instinto negociador percebia o nervosismo do seu funcionário com um pedido tão estranho. Como não dispunha de um plano melhor, só lhe restava seguir com as cartas que possuía.
— Ótimo! Sabíamos que você não nos decepcionaria. Logo mais, tenho uma reunião com o Presidente, lá no Palácio dele. Sabe onde fica?
— Sei sim, doutor. Já fomos lá outras vezes.
— Perfeito. O que vou fazer lá, dessa vez é muito arriscado e, se algo der errado, é possível que eu não consiga sair de lá fora de um carro da Guarda Presidencial. Percebe o problema?
— Positivo.
— Você vai me levar lá e vai ficar aguardando o meu retorno com o carro ligado. Melhor deixar ele em uma posição de fácil acesso ao portão. Se você perceber alguma agitação, ou mesmo tiver alguma arma apontada em sua direção, pise no acelerador e se mande. Não haverá devido processo legal, se meu plano falhar. Então, atropele alguém ou derrube o portão, se necessário. Você entendeu?
— Positivo.
— No banco de trás, vou deixar esta maleta. Se for o caso de você fugir, proteja esta maleta com a sua vida. Guarde-a e, algum lugar seguro e espere meu irmão ir te procurar. Você se lembra dele, certo? Só entregue a ele. Você entendeu?
— Positivo.
— Ótimo! Agora me ajude a prender este objeto aqui na gola da minha camisa.
Os dois desceram do avião e partiram, arrancando o carro pelo hangar.
A rádio que toca notícias quebrava o silêncio no automóvel. O patrão estava tenso e, como fizera raras vezes, sequer tocou no celular. Fortes não arriscou qualquer papo. Estava ainda digerindo e revisando todas as informações que acabara de receber.
Vinte e cinco minutos passaram voando e já estavam em frente ao destino. 
— Que Deus nos proteja, amigo — a prece veio acompanhada de um tapinha leve nos ombros do motorista.
— Amém, doutor.
Ao contrário das outras vezes em que visitaram o Palácio, naquela noite Fortes não precisou entregar sua habilitação ou responder qualquer pergunta. Bastou o empresário baixar o vidro, dizer o seu nome, e em dois ou três minutos já estavam dentro. 
O patrão desceu e, conforme combinado, a maleta ficou dormindo sossegada no banco traseiro. Fortes manobrou o carro para conseguir a posição mais favorável à uma eventual fuga. O modelo era blindado, então, tiros não seriam problema. Não estava certo sobre a eficácia da proteção, em casos de granadas, mas torcia mesmo que tudo acabasse rápido e bem para todo mundo.
O tempo, a despeito das suas preces, se arrastava.
“Acho que é por causa disso que os cientistas dizem que o tempo é relativo. Chega o fim do ano, mas o dia de hoje não acaba!”
“Será se vai dar merda isso aqui?”
“Aquele pen-drive que ele levou na gola... Não parecia um gravador, mas o que mais poderia ser? Um rastreador, talvez… Tinha um tipo de borracha em volta…”
“E o que será que tem nesta maldita maleta? Dólares? Pedras preciosas? Não… acho que o patrão não faria tanto estardalhaço por dinheiro. Ele já tem de sobra. Deve ser algo muito mais sério… mas, o quê?”
“E eu metido nisso tudo? Ai de mim! Se eu for pego, meus planos de passar em algum concurso público vão para o ralo!”
“E se aquele objeto for um detonador para uma bomba que está dentro desta maleta? Caralho! É isso! Todo aquele papo de sair correndo, derrubando tudo, era balela! Se algo acontecer com ele, quem vai explodir sou eu!”
De repente, Fortes estava pulando no banco, gritando e levando as mãos ao alto.  Mas não foi de pânico pela bomba. Um cachorro enorme estava latindo na sua janela, riscando o vidro com os dentes. Por cima do animal, um feixe de luz vindo de uma lanterna, segurada por um soldado, tentava iluminar o interior do carro. O gesto vindo de fora era claro: deveria abaixar o vidro.
Passado o susto, conseguiu atender ao comando do soldado e abriu um pouco a janela.
— Assustou? — disse o praça, rindo.
Não houve resposta.
— O senhor está parado em local proibido. Aqui é área de segurança. Vai demorar muito?
— Sinceramente, não sei. Mas não queria ter que tirar o carro daqui. O doutor pode não gostar.
Fortes respondeu ao soldado com alguma convicção na voz, mas o que ele queria mesmo ter dito era: “Socorro! Tem uma bomba neste carro e vamos todos explodir!”.
— Tudo bem, parceiro — disse o soldado. Vou reportar ao meu superior, mas acho que não teremos problemas. Boa noite.
“Então, é dessa forma que eu vou reagir, se tiver que sair fugindo daqui? Com chiliques e gritinhos… Não sei o que é pior, eu ter o emprego mais perigoso da República, estar com uma bomba no colo ou essa minha reação histérica ao primeiro sinal de perigo…”
“Trinta minutos e nem um sinal do homem…”
“Pelo menos, passado o susto, tudo está bem tranquilo aqui fora. Eu não seria o homem mais feliz do mundo, naquele momento, se não houvesse uma janela blindada entre mim e o cachorro, ou mesmo se a bomba explodisse.”
“Será que um empresário como ele seria capaz de explodir a casa do presidente? E, para o meu azar, me explodir junto?”
Quanto mais pensava no assunto, mais lhe subia uma gastura no peito, e mais ansioso ficava.
Quase quarenta minutos depois, o patrão sai pela porta de trás do Palácio, a mesma pela qual tinha entrado. Um assessor apressado o seguia, gesticulando efusivamente. Uma resposta do empresário foi o bastante para ele parar de persegui-lo e acompanhar a sua partida apenas com os olhos. 
“Ufa! Acho que agora não explodo mais…”
Se sua relação com o patrão fosse mais próxima, Fortes teria perguntado quais foram as palavras mágicas que ele usara para paralisar aquele homem e, sem rodeios, perguntaria como diabos ele tinha coragem de andar por aí com uma bomba na maleta.
Tão logo entrou no carro, o patrão retirou o equipamento da camisa, abriu a maleta e o acoplou em um computador que havia dentro dela. 
— Saída rápida, Fortes!
— Positivo!
Após saírem do Palácio, mas antes que Fortes tivesse tempo de perguntar o próximo destino, o empresário deu uma forte gargalhada.
— Sabe o que significa a noite de hoje, meu amigo? O início de um novo Brasil. E você faz parte disso! Pena que não estarei exatamente aqui para viver o resultado dessa bomba.
Fortes sabia que aquele era um monólogo do patrão consigo mesmo, por isso apenas laçou um olhar pelo retrovisor e esticou a boca para um lado, esboçando um sorriso. 
— Para onde vamos agora, doutor?
— Ah sim. De volta ao aeroporto.
“Espera aí… Ele falou bomba??”
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*Os fatos narrados neste conto são frutos exclusivos da fértil imaginação do autor deste blog.


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