segunda-feira, 10 de abril de 2017

O homem do campo


Mundico ouvia aquela conversa sobre as reformas do presidente e pensava sobre o futuro da sua gente. "Será se os homem vão mesmo tirar a aposentadoria da gente?". "Às vezes não sobra nem o de comer, imagina ter que mandar dinheiro para o governo todo mês?".
— Tião, tu acha que essa história procede?
— Num sei Mundico, mas esses meninos aí entende mais das coisas do que nós. É bem capaz de ser verdade mesmo.
Pouco antes do final da roda de conversas, Mundico pediu a palavra:
— Se o que vocês estão dizendo for verdade, tá todo mundo lascado aqui. Eu mesmo, já tô com 43 anos, mas não aguento com as costas. Duas horinha de serviço e ataca uma dor que eu num guento, tenho que sentar. Não fosse os menino, nós já tava tudo passando fome. Todo mundo aqui está de prova. Segunda-feira mesmo vou lá no Marabá tirar isso a limpo com o nosso advogado e, se for verdade mesmo tudo isso que vocês estão falando, vou bater em Brasília para falar com o Presidente.
As risadas saíram frouxas, mas, quem conhecia Mundico bem, sabia que ele não estava brincando. Quando ele colocava alguma coisa na cabeça, não havia quem o demovesse a ideia.

*

Sete horas da manhã e Mundico já na porta do escritório. Como o estabelecimento só abriria às oito, aproveitou para traçar o plano que o levaria até Brasília, até o tal Presidente.
"Daqui eu já vou na rodoviária ver a passagem e, se der, já tirar o bilhete. Volto na roça, arrumo umas coisas, dou um cheiro na mulher e volto para pegar o ônibus. Lá em Brasília eu vejo como eu faço para encontrar com o homem. Agora só preciso entender bem essa reforma e ensaiar o que vou falar para ele".
O secretário do advogado abriu o escritório pontualmente às oito. Não estranhou Mundico na porta tão cedo, pois essa não era a primeira vez que ele corria até ali para buscar respostas.
— Que foi agora Sr. Mundico? Veio saber do aquecimento global?
— Oi? Não conheço essa luta. Contra quem é?
— Esquece! Essa briga é grande demais até mesmo para um homem de fibra como o senhor.
— Amigo, se a luta for justa, ela sempre caberá no peito! — dois socos fortes acompanharam as sílabas dessa última palavra.
— Está certo. Mas, o senhor ainda não falou o que  o está preocupando dessa vez…
— Ainda ontem, aqueles meninos lá da universidade estiveram lá com a gente e passaram mais de hora falando de uma tal de reforma da previdência. Pelo que eles adiantaram, o negócio é sério. Deve ser mais sério do que esse seu aquecimento bem aí. Então, eu vim aqui saber do doutor o que ele acha disso. Os detalhes, sabe?
— Tudo bem. O senhor já é de casa. Pode ir sentando, que eu vou aprontar um café para servir. O doutor só deve chegar por volta das nove horas.
Entre uma xícara e outra, eles foram colocando os assuntos da cidade e da roça em dia, e o doutor já chegou pegando um gancho em uma dessas conversas.
— Se ela engravidou, os pais tinham mais é que acolher mesmo. Isso de colocar a moça na rua por causa desses acidentes, só aumenta as chances dela se tornar uma usuária de drogas ou mesmo recorrer à prostituição para sobreviver. Mas, eu tenho certeza que o Sr. Mundico não veio aqui falar da filha do Tião.
— Verdade, doutor. Meu problema hoje é outro. Queria saber do senhor sobre essa reforma da previdência que o Presidente quer fazer. No que isso vai dificultar a nossa vida lá na roça? Porque melhorar eu já sei que não vai…
— Nem me fale, Sr. Mundico… Bem… Vou tentar explicar com poucas palavras, mas, se ficar alguma dúvida, pode perguntar. Hoje, todos que trabalham no campo, produzindo comida para a cidade em seu pedaço de chão, têm direito a uma aposentadoria chamada “especial“. É especial porque o homem do campo não precisa contribuir para o INSS, como os trabalhadores com carteira assinada fazem. É especial também porque a lida no campo é muito mais pesada do que a da cidade, e o senhor sabe muito bem disso.
— Minhas costas que o digam, doutor.
— Pois é. Pela nova regra, todos passarão a contribuir, mesmo vocês, agricultores e criadores. E a idade para começar a ter direito será sessenta e cinco anos, sendo que, para conseguir receber o valor cheio, o tempo de contribuição será de quarenta e nove anos. Ou seja, tem que mandar dinheiro para o governo por quarenta e nove anos, sem falhar nenhum mês.
— O que? É desse jeito mesmo? Mas esse povo de Brasília está pensando o que da vida? Passam o dia no ar condicionado, naqueles paletó, e não sabem nada da luta que é para arrancar comida da terra. Nunca tiveram que limpar uma junquira e ficam com essas ideias erradas de reformar a nossa aposentadoria.
— O senhor está coberto de razão, Sr. Mundico. Só nos resta lutar para que essa reforma não passe. Os movimentos estão se organizando por aqui e a gente precisa incluir vocês do campo também.
— Vamos lutar juntos sim. Mas antes eu tenho que colocar em prática um plano meu. Vou para Brasília falar com o Presidente. Saindo daqui, já vou na rodoviária tirar a passagem para lá.
— Sr. Mundico, o Sr. já foi em Brasília e sabe que não é muito perto. Além disso, é uma viagem cara e pode, no final, ser inútil.
— Lembro bem que dá mais de um dia de viagem. Mas, isso não importa agora. Se eu não for até lá, contar ao Presidente sobre essa gente que eu represento aqui, não vou mais ter paz comigo mesmo. E essa questão do dinheiro, já sei que o doutor vai me dar uma ajuda!
— Se eu já não o conhecesse há tanto tempo, gastaria mais algumas palavras para tentar convencê-lo a não ir. Mas, cabeça dura como Sr. Mundico, não há nesta região.
A conversa terminou com muitas risadas e um lampejo de esperança nos olhos dos doutor. Ele não duvidava que o caboclo conseguiria falar com o Presidente, só não estava muito confiante na eficácia da medida.

*

Mundico se despediu da maioria dos seus companheiros de assentamento. Precisava correr, pois a viagem teria início em um par de horas. Todos ajudaram como puderam: com uma fruta, com uma marmita, com um dinheiro.  Na pior das hipóteses, aquelas seriam as primeiras contribuições que fariam para as suas aposentadorias.
O ônibus deixou a rodoviária no horário marcado. Seriam mais de trinta horas, olhando a paisagem e pensando na vida.
Muitas cenas das lutas passadas assaltaram a sua mente. Lembrou de como foi difícil chegar naquela terra. Os primeiros dias de ocupação, o medo da morte no fação e na espingarda dos fazendeiros. O processo final ainda estava na Justiça, mas, segundo seu advogado, agora era só uma questão de tempo. O que mais queria era trabalhar e morrer naquela terra. Na sua terra. E se misturar com ela para voltar ao mundo em forma de alimento e de água. Era o seu sonho.
Dormiu.
Acordou.
Dormiu novamente.
Por fim, despertou já em Brasília. Explicou seu plano ao motorista, inclusive com os detalhes da sua opinião sobre a reforma do Presidente.
— Meu senhor, o senhor veio do Pará até aqui e ninguém lhe disse que esse seu plano é uma furada? Que é uma loucura sem tamanho? Pois eu lhe digo: o senhor é louco e esse seu plano é mais louco ainda.
— Homem, responda a minha pergunta, como faço para chegar no Presidente?
O motorista passou as coordenadas, e arriscou mais duas ou três piadas sobre a ideia de Mundico. Por alguma razão, talvez para ter tempo de rir um pouco mais, resolveu facilitar bastante a vida do agricultor, esticou a rota e o deixou a cerca de uma hora de caminhada do Palácio Presidencial.
Mundico seguiu seu rumo. Contemplava os edifícios todos iguais do setor ministerial e se perguntava como era possível o trabalho de tanta gente não resultar em uma vida melhor para ele e para os seus.

*

— Bom dia! É aqui que o seu Presidente trabalha? Preciso falar com ele.
A assertividade de Mundico deixou a recepcionista do Palácio afônica por um instante. Mas, logo lembrou do procedimento operacional padrão quando pessoas com baixo nível de discernimento chegavam procurando pelo Presidente. Sim, havia um protocolo para tratar os “aventureiros“, como Mundico.
— Lamento, Sr. O Presidente cumpre agenda hoje em São Paulo. Ou seja, ele não está aqui para recebê-lo.
Mundico já havia levado muitos nãos na vida. Foram nãos de muitos tipos, inclusive daquele que estava recebendo ali: o não do mentiroso. Sabia que para esse tipo de não, a única saída era entrar na mentira.
— Tá certo. Vou esperar aqui fora.
— Sr., o Sr ouviu bem? O Presidente está em São Paulo e não virá ao Palácio hoje.
— Mas uma hora ele vai ter que vir aqui, e eu vou esperar ele chegar.
Quando foi carregado para fora e jogado no enorme descampado que havia em frente ao Palácio, Mundico percebeu que o seu pessoal fazia falta. Juntos eles eram mais fortes. Sozinho, ele era só mais um.
Passou o resto do dia ali. No sol. Comendo do pouco que os seus companheiros haviam lhe entregue. A noite sentiu frio, mais pela solidão do que pela temperatura.
O dia seguinte foi igual. Dessa vez, a agenda a ser cumprida era nos Estados Unidos e o novo prazo para a volta do Presidente passou a ser uma semana.
Decidiu ficar ali e continuar esperando. Mesmo que aquele não fosse um não do mentiroso, era inaceitável voltar para casa sem ter alcançado o seu objetivo.
Ao final do quarto dia, já não tinha mais comida e estava bebendo a água suja dos espelhos d'água que havia por ali.
No quinto dia, sua figura passou a chamar atenção.
Um jornalista o chamou para conversar e viu na sua história um excelente furo de reportagem.
— Estamos aqui direto do Palácio, onde um homem do campo, chamado Mundico, faz uma greve de fome para protestar contra a reforma da previdência. Ele queria explicar melhor as suas razões diretamente ao Presidente, mas não foi recebido. A reportagem entrou em contato com o gabinete do presidente e fomos informados que "o Sr. Mundico nunca havia procurado aquele setor para agendar qualquer reunião com o Presidente; que se o tivesse feito, certamente o Presidente o teria recebido".
Aquela notícia chegou como um tapa de urso em milhões de brasileiros. Os movimentos sociais e de oposição ganharam força, o trabalhador se organizou, os servidores saíram de suas salas refrigeradas, e, de repente, todos se encontraram em Brasília. Uma semana depois, a capital federal batia recordes populacionais, e, na semana seguinte, os "acampados no poder" já chegavam a dez milhões de pessoas.

*

A reforma da previdência? Essa não passou, mas passou uma nova norma que obrigava os bancos a contribuírem com cinquenta por cento de seus lucros para o sistema da seguridade social.
Mundico? Depois da reportagem e das primeiras barracas chegarem, ele percebeu que sua ideia era mesmo louca e que o Presidente jamais o receberia para uma reunião. Resolveu voltar para a roça já naquele dia. Como não havia se despedido de ninguém, nem do repórter que o tornara famoso, os boatos logo trataram de fazer dele um desaparecido e a sua imagem se tornou uma das bandeiras de luta daqueles acampados.
A confusão só foi esclarecida meses depois, com a transmissão ao vivo da sua reunião com o Presidente.