sexta-feira, 23 de setembro de 2016

Microfone

Nova York, 20 de setembro de 2016.

- Ser latina neste país é mesmo uma merda - praguejou baixinho após o quinto carro não atender o seu pedido de passagem na faixa de pedestres.

Estava atrasada para cumprir um chamado na ONU Plaza. Mas também estava cansada da invisibilidade que adquirira no novo país. Enquanto apertava o passo, revivia na mente uma infância alegre e abundante, quando era o centro das atenções e brincar na espaçosa casa da praia era a sua única preocupação. 

A realidade a chama de volta com mais um esbarrão em um senhor de terno, que quase a atira do passeio. Pelo menos, serviu para perceber que já estava diante do imponente edifício espelhado, de 39 andares. Seu local de trabalho, naquele dia.

Não era a primeira vez que ia ali. Por isso não estranhou a devassa em sua caixa de ferramentas e as apalpadas indiscretas de uma agente mal encarada. Já não ligava mais se a americana branca ao lado passava pela barreira sem maiores checagens. Só queria fazer o seu trabalho e garantir o almoço da semana.

O prédio estava bem mais cheio do que das outras vezes. Uma mistura de sons disformes fazia par com a variedade de pessoas e cores no enorme salão de piso verde. 

[MESA 113]

Era a indicação que constava na ordem de serviço do dia. 

Começou a se mover pelo salão, em busca do número. Aproveitou para observar as múltiplas feições das pessoas, e pensou como era possível gente tão diferente ficar junto e não se estapear, discutir ou, o que é pior, ficar indiferente ao outro. Ao contrário. Todos estavam animados, falando alto e, de alguma forma, se entendendo muito bem. Ela não pode deixar de notar a animação com que um homem negro conversava com outros dois, orientais. "Todos aqui podem falar", pensou.

Localizou a mesa e já de longe percebeu qual seria a sua missão: a haste quebrada impedia que o microfone permanecesse em riste e, certamente, isso dificultaria o trabalho de quem fosse utilizá-lo.

Após se apertar para passar entre as cadeiras, finalmente chegou ao número 113. Rapidamente começou a cumprir a sua tarefa e a desparafusar a haste quebrada para substituí-la por uma nova. Estava na terceira volta, quando aquele conhecido sotaque a tomou pelos ouvidos. Levantou os olhos e viu que a placa em frente à mesa indicava o nome do seu país natal. Do outro lado da bancada estavam rostos que, apesar de desconhecidos, eram familiares. Sorriu e sentiu alegria, pois era a segunda vez naquela manhã que voltava à sua terra.

De repente, o trabalho passou a ser importante e a significar algo, afinal iria reparar o microfone que levaria a voz de seu país ao mundo. Finalmente, os americanos iriam ouvir o que eles tinham para falar. E ela estava participando disso.

Tomada pela surpresa da coincidência, pensou em cumprimentar e em se identificar como compatriota do homem que estava atrás da mesa, mas ele parecia tratar de um assunto bastante sério com outros três homens, também latinos. Conseguiu captar alguma tensão no ar e eles pareciam discutir se fariam ou não algo que, pela expressão retesada, deveria ser muito importante. Um grande discurso, quem sabe.

Ela se apressou para concluir o trabalho, pois as pessoas começaram a tomar assento. No centro do salão, diante de uma alta e iluminada parede amarela, um senhor calvo e grisalho fora anunciado e já se instalava em um púlpito de mármore escuro para começar a falar. No exato momento em que checava e aprovava o resultado do seu trabalho com o microfone, o homem calvo começava a se dirigir à plateia falando em português. 

Se distraíra com o discurso do homem calvo e com a arrumação das ferramentas em sua caixa. Não percebera que seu conterrâneo deixara a mesa. Espantou-se com o local vazio e, ao olhar para cima, viu ele e os outros três homens subindo as escadas e deixando o salão. O nome do seu país, assim como o microfone, com a haste novinha em folha, foram abandonados.

Muito frustrada, praguejou:

- De que adianta consertar o microfone de quem não tem voz?

FIM
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Epílogo
Jornalista: Sr. Presidente, o que o Sr. tem a dizer sobre o protesto de seis nações latinas, que se retiraram do salão no momento do seu discurso?
Presidente: Saíram? Não percebi.

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